sexta-feira, 26 de setembro de 2014

Os três porquinhos

Era uma vez uma porca que tinha três porquinhos. O porquinho José, o porquinho Ricardo e o porquinho António eram construtores muito talentosos e, quando chegou a altura, a porca mandou-os sair de casa para procurarem a sua fortuna. Qualquer semelhança com outros porcos construtores noutras histórias, é pura coincidência. Estes são irmãos.
O José encontrou um campo cheio de rosas e resolveu juntá-las para fazer a sua casa. Num instante lá estava ele instalado, os espinhos e as folhas verdes virados para fora, as rosas vermelhas e perfumadas viradas para dentro.
O Ricardo andou um pouco mais e encontrou um campo cheio de laranjeiras. Apanhou alguns galhos cheios de folhas e frutos e começou a juntá-los para fazer a sua casa. Demorou um pouco mais, mas depressa tinha uma casa bonita, com os galhos e as folhas viradas para fora e as laranjas deliciosas viradas para dentro.
O António, que tinha acompanhado os dois irmãos, juntou rosas de um campo e laranjas do outro, e fez uma casa mais forte. Teve que trabalhar muito e usar luvas pois era difícil entrelaçar os espinhos das rosas nos galhos das laranjas. Puxou uns cordelinhos que tirava de um saco azul e continuou a trabalhar até muito depois dos seus irmãos terem parado para descansar.
Um lobo que costumava rondar aquela zona apareceu à porta do José, o da casa das rosas.
“Porquinho, porquinho, deixa-me ir aí para dentro.”
O José respondeu:
“Estou aqui bem cheiroso, nem penses que me apoquento.”
“Eu faço força, e com tempo, consigo mudar o vento.”
E então o lobo fez força, e com tempo, conseguiu mudar o vento até que uma rajada levou as rosas dali para fora e o porquinho José ficou sem abrigo. Foi a correr ter com o seu irmão Ricardo, à casa das laranjas. O lobo seguiu atrás.
“Porquinho, porquinho, deixa-me ir aí para dentro.”
O Ricardo respondeu:
“Estou aqui abastecido, nem penses que me apoquento.”
“Eu faço força, e com tempo, consigo mudar o vento.”
E então o lobo fez força, e com tempo, conseguiu mudar o vento até que uma rajada levou os ramos de laranjas dali para fora e os dois porquinhos ficaram sem abrigo. Foram a correr ter com o último porquinho, o António.
“Ó António, deixa-nos entrar, que vem aí um lobo mau!” Diziam os dois porquinhos à porta do irmão.
“Entrem rapazes, que esta casa dá para todos.”
O lobo veio logo de seguida.
“Porquinho, porquinho, deixa-me ir aí para dentro.”
O António respondeu:
“Estou aqui bem confortável, nem penses que me apoquento.”
“Eu faço força, e com tempo, consigo mudar o vento.”
E então o lobo fez força, e com tempo, conseguiu mudar o vento, mas a casa aguentou-se. O lobo pôs-se do lado esquerdo da casa e soprou, e com o tempo tornou a mudar o vento, mas não lhe adiantou de nada. Foi para o lado direito e soprou, e com o tempo mudou o vento, mas a casa manteve-se de pé.
Vendo que as mudanças de vento não conseguiam deitar a casa abaixo, tentou entrar pela chaminé, mas o resultado foi um rabo queimado e as patas todas picadas.
Ao longo do tempo os irmãos foram adquirindo alguns confortos, e a casa tornou-se maior. Tinham alguns bancos dentro da casa, e outros lá fora, nos jardins onde costumavam cultivar mais plantas, como as rosas e as laranjeiras que lhes deram tantas alegrias.
De longe a longe o lobo lá voltava, mas os três porcos construtores cresceram felizes e gorduchos e a casa nunca caiu.

terça-feira, 23 de setembro de 2014

Fico doente

Hoje é um daqueles dias.
Quando me apanho assim, não vale a pena. Já sei que sou bruto, que não tenho consideração pelas pessoas. Às tantas chamam-me psicopata, por não sentir empatia pelo sofrimento dos outros.
O que é desta vez?
É a história dos doentinhos avisados.
Vamos já separar duas coisas: Categoria a) está doente, coitadinho, porque foi atropelado na passadeira, ou porque herdou uma doença do pai; b) está doente coitadinho, porque fuma como uma chaminé. Hoje só estou a falar da segunda categoria. Dos avisados. Dos que sabem perfeitamente o que estão a fazer, e esperam que o resto da sociedade pague.
Porque é que eu tenho que pagar impostos para tratar do cancro dessa gente? Já sei que o país é fumador, e que estou a alienar um segmento grande da população. Que não seja por isso. Também não quero ser incomodado pela falta de saúde dos gordos. E dos bêbados, drogados, pinantes e toda a espécie de malucos que a sociedade insiste em tratar como pessoas normais, como se tivessem os mesmos direitos que os outros.
Apanhaste hepatite C? A fazer o quê? Não, a sério, vamos ver. Eu pago essa investigação, seja uma junta médica ou judicial. Prefiro.
Vamos lá: todos aqueles que apanharam hepatite a tratar de um familiar doente, faz favor, entrem para o consultório. O medicamento custa centenas de milhares de euros por pessoa, mas eu quero que o dinheiro vá para aí. É melhor do que renovar uma escola que vai fechar no próximo ano. Ou comprar um Ferrari na Côte d'Azur.
Agora os outros. Os que apanharam hepatite C num salão de piercings e tatuagens, ou a chutar para a veia, ou porque acham que o preservativo lhes atrapalha o estilo. São 150 mil euros. Não estou a defender matar essa gente. Qualquer um pode cometer um erro. Tem é que pagar por ele.
Vamos lá aviar mais clientes:
Muito bem, gosta de levar por trás nas casas de banho públicas desde a final do Euro 2004? Ok, não tenho nada a ver com isso, mas obrigado pela informação. Passe bem. O que foi? Ai agora tem SIDA? Vá-se tratar, mas não no sistema público de saúde. Não, para si não tenho retrovirais. Ah, que engraçado, retro viral, parece um vírus que entrou por trás. Desculpe, eu não devia brincar com isto. Vá lá, ligue para o 760 da TV, pode ser que ganhe um retroviral.
Próximo.
A senhora, o que quer? Sente-se cansada? Acha que está inchada? Não está nada. Nem inchada, nem fortezinha. Pelo contrário, está muito fraca. A senhora está obesa. Coma menos. Não consegue? Pronto, então coma mais. Ainda está aqui? Ah, já podia ter dito, quer uma banda gástrica. Pois, lamento, não temos. Quer dizer, tenho aqui umas no armazém, mas custam 20 mil euros. Já com mão-de-obra. Tem? Ai coitadinha, é pobre? Olhe, coma menos que poupa. Quando tiver amealhado os 20 mil venha cá outra vez. Pode ser que já não precise. Ou porque emagreceu, ou porque morreu. E digo-lhe já que só a enterro com dinheiro público se não houver heranças.
Próximo.
Eh, lá, ó chefe, você não pode entrar aqui assim. Vá para casa, beba água que isso passa. Ah, já não passa, já tem cirrose? Olhe, podia ser pior, podia não ir a tempo de fazer as partilhas. Não, lamento, mas não temos nada para si. Transplante de fígado? Não. Não adianta vir com o seu irmão que você convenceu a ser dador. E quem é que vai pagar os médicos? E enfermeiros? E empregadas de limpeza, e contabilistas, e administradores. E a construção do hospital? Não senhor, o hospital não estava aqui na mesma se você não fosse estúpido! Se você não fosse estúpido, e não houvesse mais estúpidos como você, não havia necessidade do hospital ser tão grande. Nem de haver tantos. Assim como estamos, carregados de estúpidos, não chegam os hospitais, nem os médicos, nem aquela gente toda que está lá dentro. Vá-se embora estúpido.
Próximo.
Estou a ver que não avio esta gente toda hoje.
Venha cá, para eu o ver melhor. Deixe ver esses olhos. Hum, pupilas dilatadas, respiração irregular. Ó jovem, você de onde vem? De uma rave. Porreiro, isso deve ser muito divertido. Eu nunca fui. Se eu tenho inveja? Deve ser isso. Mas diga lá, o que o traz aqui? Ah, já vomitou e sente que vai desmaiar. Isso passa. Pode morrer, mas pode passar. É excitante, não? Estou cheio de inveja.
Próximo.
Ei, eu disse próximo, no singular. Vamos, só passa o senhor que está a sangrar. O que é que ele tem? Levou um tiro? Hum... Ok, pode entrar. Mas nesse caso, deixe-me ver a identificação. É só por segurança. Esperem, estou a ver aqui que os senhores não pagaram impostos nos últimos séculos. Lamento, têm de ir a outro sítio. Não meus senhores, não estou a ser racista. Aceito perfeitamente um estilo de vida nómada. Se não quer fazer parte deste tipo de sociedade, esteja à vontade. Agora não venha bater à porta da sociedade quando lhe convém. E não, não quero levar um balázio no focinho, obrigado.
Próximo.
Rápido, deixem passar este jovem à frente, que ele está a sangrar da cabeça. Diga lá a senhora, é mãe dele? O que se passou? Caiu de mota. Acontece muito sabe. Sim, eu acredito que ele anda sempre devagar. Levava capacete? Costuma levar sempre só que hoje esqueceu-se... Pois. Não temos vaga. A menos que pague. Tem que ser, há pessoas para tratar que não têm culpa nenhuma. As quimios são caras. Os partos também. Ou quer que eu cobre ao recém-nascido? Ele já tem muito para pagar nos próximos 40 anos, coitadinho.
Próximo.
Você trouxe a sua colega da queima das fitas? Não precisa de explicar. Se ela sobreviver ao coma alcoólico, diga-lhe que não perca os Xutos amanhã. Agora não insista mais comigo. Sim, eu percebo que você é finalista de um mestrado à bolonhesa em ciências sociais. Ok, você estudou ética, parabéns. Não vale a pena insistir, eu sei que uma lavagem ao estômago e uma noite a soro não é caro, e pode-se salvar uma vida que mais tarde pode ser valiosa. O que você não entende é que o saco de soro para curar essa desvairada é mais caro que o tratamento para a malária de uma criança africana. Use isso para apresentar um trabalho sobre ética na próxima aula.
Por falar nisso. Hoje já salvei uns quantos milhões. Não se preocupem, eu não fico com eles no bolso. Vai tudo para os cofres do estado, para eles esbanjarem noutros sítios. Mas se comprarem 10 mil euros de antibióticos e os doarem aos Médicos Sem Fronteiras, eu amanhã volto e torno a cortar nesta cambada toda.
Combinado?

sexta-feira, 19 de setembro de 2014

Uma terra bipolar

- Que disparate, senhores magistrados! Onde é que já se viu um planeta bipolar? - perguntou o advogado do arguido.
A sala estava apinhada. Entre queixosos e familiares, repórteres e curiosos, havia gente que não tinha lugar sentado. O advogado fazia gestos grandiosos, acrescentando ao ridículo da situação.
- O meu cliente limitou-se a escrever uma fantasia, uma fabulação, uma fragmento febril de uma fíbula fantástica. Nunca quis ofender os queixosos, nem a eles se estava a referir. Se eles se sentiram mal, eu e o meu cliente estendemos as nossas condolências, mas nada temos a ver com isso.
- Pois Sr. Dr. - interrompeu o juiz -, isso é tudo muito bonito, mas de facto o nosso Portugal fica num planeta com dois pólos, poder-se-á considerar bipolar, e o seu cliente menciona factos muito concretos, relativos aos queixosos.
- Sua Excelência terá de me perdoar a ignorância - disse o advogado de defesa, em tom humilde -, mas se são factos concretos, haverá então razão para este processo? E quanto ao uso criativo que Sua Excelência deu à palavra bipolar, permita-me que lhe diga, com tanta imaginação, pode ainda vir a ser o próximo autor do "terra bipolar"